Crônica da Casa Ressuscitada - III
A nossa intimidade guarda em nós salões franceses do século XVIII, adornados e espaçosos de fazer eco. Caminham por eles aristocratas de perucas vestidos com suas melhores roupas, cantando suas melhores músicas e emitindo as mais diversas opiniões sobre a política corrente. Pedem desculpas como lordes que são, falam baixinho, pausadamente, temem a incompreensão e o escárnio. Por isso, são tão frágeis. Ao menor ruído dissonante, os salões fecham suas portas, apagam-se os candelabros, os dedos dos nobres vão às próprias bocas, em riste, fazendo “sshhh”. Talvez não nos vejam aqui, eles pensam, talvez esqueçam que ouviram de nossa música, comeram de nossa comida, sentaram em nossas poltronas. Mas não se esquece facilmente de um salão francês do século XVIII. Ele foi feito para brilhar, chamar atenção, aconchegar e ser lembrado. E, quando alguém tem acesso a ele, é inevitável que deixe suas marcas de dedos plebeus, mas que também se lembre do conforto que é acessar a intimidade alheia. Pode até ser que a pessoa não queira voltar, mas ela se lembrará do aconchego. Talvez, inveje-o até. Aprendemos a manter as portas do salão fechadas para evitar esse tipo de coisa. Nossos frágeis nobres não merecem essa desfeita. Assim, aceitamos a desconexão: para evitar a queda da Bastilha. Não se culpa ninguém por isso, é importante deixar claro. Cada um trata da própria nobreza de sua intimidade como bem entende. Caso contrário, seríamos obrigados a acessar e ser acessados como bem desejam os outros. Deixemos a defesa do bem comum para o que é capital, clamaria até o mais imprudente revolucionário. Na minha Bastilha não! De imprecisão em relação ao que desejamos, basta a nossa. Ainda que a imprecisão seja um exercício recorrente a todos nós. Localizar-se no tempo, por exemplo, é um exercício de imprecisão. Depende da razão, mas acima de tudo da emoção. A gente fica meio estranho quando tem sentimento no meio. A falta de precisão tem a ver com a capacidade de sentir mil coisas, mesmo em curtos espaços de tempo. Se eu tivesse um sensor que medisse minhas emoções durante 5 minutos, não tenho dúvidas que passariam de 20, 30, 40 sentimentos registrados. Entre contatos com o presente, lembranças do passado e expectativas de futuro, a gente viaja demais dentro da própria cabeça.
Esse cartum de Tom Toro, publicado na New Yorker, reflete bem nossa capacidade de transitar pelos próprios coração e mente. A feroz urgência do agora. A tentadora promessa do amanhã. A vaga imprecisão de algum tempo. O momento é o pano de fundo para nosso acesso a diferentes realidades. Estamos neste “algum tempo” quando não temos nada para agora ou para o futuro assolando a mente. E esse “algum” é bastante. Eu passo meu tempo livre quase todo com o Matias hoje em dia. Se não estou trabalhando, correndo na rua ou fazendo compras, estou com ele no meu colo ou olhando pra ele. A pandemia do Coronavírus aumentou ainda mais a nossa proximidade. Sinto que cuidar do meu filho é cuidar de mim mesmo. E cuidar-se é um ato fácil de deixar pra lá. Ano passado, eu empreendi uma mudança de carreira que acabou não se confirmando. Mudei até traços da minha personalidade na expectativa de me adaptar. Também foi a época em que acredito ter mais cuidado da minha saúde física: exercício todo dia e pouca besteira pra comer. Eu anotei diariamente minhas refeições, com a disciplina de um general, por meses. Cada escorregada equivalia a um registro vermelho no bloco de notas. Minha fama se espalhou pelo trabalho. Perdi 6 kg e ganhei a tão sonhada massa magra. Os registros fotográficos das consequências positivas são troféus íntimos pendurados na parede da minha autoestima e num álbum de fotos do meu celular. Então, os planos mudaram e a guinada na carreira passou a não fazer mais sentido. Eu me considero alguém resistente a frustrações. Ao mesmo tempo, costumo ser exigente comigo. Essa oposição pende emoções para o positivo e o negativo. Quando os planos não se confirmaram, eu passei a me cuidar menos. É como se um desequilíbrio puxasse outro desequilíbrio. Ou como se um grande foco fosse compreensivelmente seguido pelo desfoco. Não dá pra manter a mira 100% toda hora. Eu passei uns meses meio fora de sintonia, comi besteira, fiz menos exercícios... mas eu tinha a Clarissa e planos pela frente, então, é claro que poderia ter sido muito pior. Mais de um ano depois, eu me vejo tentando equilibrar a chegada do Matias com mais foco para a minha saúde e a elevação da autoestima, tão necessária. Toda casa ressuscita primeiro com alguém, mesmo que haja um só. Os demais participantes, caso existam, devem ser inspirados. Essa ressurreição pode parecer um ato de fé em princípio, mas para mim não começa aí. Eu já construí tanta coisa. A ressurreição pressupõe uma vida anterior e a morte. Para ressuscitar é preciso ter algo a resgatar. Por isso, eu troco o futuro pelo passado, já que daquele nada se sabe e desse tudo se quer. Eu quero as brincadeiras da tarde com Rodolfo depois do colégio. O almoço gostoso, com batatas fritas e suco de maracujá, sem aviso no meio de semana. Ter para mim o jogo de videogame disputado para alugar na locadora da quadra no sábado de manhã. No cartum de Toro faltou uma referência ao passado. Talvez, seja a imprecisão de algum tempo. Ela nos remete ao que construímos e nos construiu. A imprecisão é o resultado do contato, acessível de infinitas formas. O futuro guarda ainda conexões a fazer. E o passado é todo conexão. Eu concordo com Koselleck e abro mão do acaso na minha história. Ela foi toda encadeada por eventos conectados para me trazer até aqui com a força para ressuscitar a minha casa sempre que for necessário. Ou é assim que eu espero ser.
Eu não sei se eu tenho mais passado do que futuro pela frente. Será que já cheguei na metade? Eu deveria me preocupar com esse tipo de coisa? De que vai lembrar o Matias quando ele tiver mais passado do que futuro? Ele vai lembrar com prazer da casa que construímos, que ressuscitamos dia a dia? Serei eu capaz de contribuir para sua memória mais positiva do que negativamente? Eu vou seguir dizendo que o amo como digo agora? Entre tudo que farei de errado, ele será capaz de me perdoar sempre e de forma tão rápida quanto eu gostaria? E vice-versa? O seu olhar impreciso, tal qual a nossa capacidade de localização no tempo, ainda carrega esse mistério pra mim. Não sei qual será a personalidade do meu filho. Busco indícios na forma como ele nos chama, em como chora, como fica irritado, sorri, em como sofre. Ele já é capaz de me tirar do sério, quando acorda às 4h da manhã, com gases, ou cólica ou seja lá com o que irá nos manter acordados por dezenas de minutos. Antes do Matias, apenas Clarissa era capaz de me tirar do sério. Antes dela, Rodolfo e Clara. Antes deles, meus pais. Que estranha é essa conexão que nos fragiliza perante quem nos importa. Eu não sinto isso com o governo, com qualquer causa social, com política ou economia. Só realmente me acessa o que é íntimo e, novamente, o impreciso. Eu carrego o meu “pacote do que não tem resposta” nas costas, subindo o monte para, irritado, jogá-lo lá de cima, recuperar a paciência, voltar andando lá pra baixo com calma e resignação e apanhá-lo novamente. Algumas coisas caem do pacote: tanto o que poderia quanto o que não deveria. O sentimento de perda é inevitável, mas o importante é recuperar o pacote. Com ele em mãos, eu me apego ao que segue sendo meu e empreendo a jornada pra cima novamente. Caminhar em frente e para cima é ressuscitar a casa, sim, sabendo que daqui a pouco será preciso percorrer a mesma trilha já caminhada. Mas ela não será a mesma trilha, como o clichê não me deixa mentir. Algumas vezes eu escrevi que o passado mais une do que separa. Eu gosto de me repetir no que é importante. A capacidade de se conectar e manter-se assim é uma das mais trágicas de não se dominar. O núcleo familiar é posto em cheque muitas vezes em razão disso. A família se transforma em obrigação, em vivência forçada das mais desagradáveis. Realmente, é difícil aturar quem parece tanto conosco. Matias talvez seja tão mal-humorado quanto eu na madrugada. Clarissa é a única que acessa esse meu momento monstruoso de impaciência. É a única a quem posso agradecer por me aturar em meu pior momento. A desconcertante precisão do tempo errado. Seria a madrugada meu processo de ressurreição em andamento? A necessidade de recuperar a energia para contribuir com a ressurreição da casa? Diz que dormir é quase ou mais importante do que se alimentar. Recarregar as baterias é admitir a fragilidade e se expor. Conectar-se é igual.
Não dá pra manter a mira 100% toda hora. Em meio aos macarons e madeleines de minha intimidade, a elite confabula. Dos jardins lá fora, ouvem-se suspiros, entre arrependimentos, lamentos e esperança. Meus nobres seguem unidos para manter a minha intimidade de pé, protegida, limpinha, concatenada às minhas lembranças, aos pedaços, costuradas pela linha do sentido. À deriva, em meio à vaga imprecisão de algum tempo, entre convites para dançar, serenatas ao piano, fofocas sobre o último caso de amor na corte, eu recebo Matias, Clarissa, Rodolfo, Clara, Roberto, Clarice para chás não agendados. De 1986, pulamos para 1994. Retornamos para 1990 apenas para um novo salto direto à semana passada. A turba, ávida pelo acesso aos salões, clama por acolhimento, reparação, brioches. O sustento da própria intimidade demanda seleção, a ressurreição da casa demanda certos limites. Tudo que é frágil carrega a beleza do iminente fim. A grande possibilidade de não mais ser. A energia potencial da transformação em lembrança. Por isso, a gente guarda, protege, esconde. E, mesmo que não haja vergonha na autoproteção, há benefícios na acessibilidade à fragilidade. Ainda que haja chances da Bastilha cair. Talvez exatamente por isso. Então, visto meus nobres com os mais belos tecidos, mantenho o salão limpo e brilhante. Vou ter que ressuscitar novamente amanhã. Então, porque não tentar? E, se tudo cair, restando-me apenas Napoleão para reclamar o que nunca foi seu, que eu utilize a minha feroz urgência do agora pra lhe convidar a um último chá em homenagem a todas as mortes, mudanças de planos, dúvidas e ressurreições vividas até então.
Candida Höfer costuma tirar fotos de salões. Mais sobre ela aqui.