Intimidade é uma meta
Anos atrás, quando eu disse que Clarissa ficava linda ao acordar, nem ela nem eu tínhamos uma noção precisa do que eu estava dizendo. Realmente, é um contrassenso imaginar que alguém tão descabelado e com a cara amassada represente qualquer tipo de beleza. Mas eu percebia. Havia algo naquele rostinho amassado e nos cabelos desgrenhados que me fazia sentir bem. Não só bem, mas especial, como se eu estivesse vendo algo raro que elevasse a minha alma. Essa é uma boa definição de beleza, inclusive.
Hoje eu percebo o que a torna bela nesse momento em que acordamos juntos: a intimidade que partilhamos. Não é ao lado de qualquer um que nos permitimos ser vulneráveis ao revelar traços de quem realmente somos. É claro que nunca revelaremos quem realmente somos ao mundo. Há diversos níveis de intimidade. Tem coisas que são só nossas e, se o mundo ficasse sabendo, as consequências seriam desastrosas. São nossos mistérios, tão incríveis e reveladores que devem ser guardados em caixinhas dentro de caixinhas, dentro de caixinhas, dentro de um baú de chumbo no fundo do oceano.
Mas a forma que compreendemos esses mistérios vai se alterando ao longo do tempo e, sob o contexto correto, eles podem ser partilhados. É algo muito delicado e demanda um cuidado tão grande que não consigo descrever. Os mistérios que carregamos são segredos que mesmo o mais desapegado dos participates de reality show mantém para si. Porque não é de qualquer forma ou em qualquer situação que eles se revelam. É preciso uma conexão singular, que buscamos ao longo da vida, tateando aqui e ali como gatos encontrando um lugar confortável para deitar.
Fala-se bastante sobre a perda da intimidade no mundo moderno, como se câmeras para todo lado e mídias sociais impusessem barreiras que dificultam o exercício da intimidade. Eu tenho uma visão um tanto distinta. Não identifico uma selfie em meio a uma viagem, por exemplo, como violação da intimidade de uma pessoa. O mesmo vale para a subcelebridade que insiste em aparecer a todo custo. Esse compartilhamento massivo é o avesso do que é íntimo. Na verdade, ele me ajuda a ter mais clareza do que realmente é a intimidade: o mistério acessível a poucos.
Partilhar intimidade é uma forma de dividir seu mundo interior com alguém. É poder compartilhar seus mistérios e conhecer os mistérios do outro. E, em meio a esse processo, crescer. Talvez seja uma das formas mais belas, orgânicas e significativas de evoluir, pois é preciso prestar atenção, preocupar-se, dedicar-se, mas também revelar-se, ceder e renunciar ao isolamento.
O núcleo principal da intimidade é a família, que é origem de segurança, equilíbrio, conforto e orientação. Ainda que haja famílias que contrariem a regra. Não à toa, formar uma família é uma regra social. Há quem pense que essas regras são arbitrárias, mas são menos do que pensamos.
Formar uma família é uma ação complexa para a qual nos preparamos já dentro de uma família. A educação sentimental que recebemos tem impacto direto na habilidade que somos capazes de desenvolver. A depender dos traumas e falhas da relação estabelecida no núcleo familiar, nós ficamos limitados em nossa margem de ação.
As experiências pelas quais passamos, fora do núcleo familiar, também têm impacto em nossa capacidade de construir intimidade. Principalmente, o contato com nossos amigos, que talvez seja o segundo principal núcleo de partilha íntima.
Provavelmente, a relação de paternidade é a mais íntima de todas. Ainda mais a de mãe e filho, que partilham um mesmo corpo do nascimento à fase inicial de alimentação. Eventualmente, essa intimidade vai se alterando, à medida que o filho desenvolve sua autonomia.
Nós exercemos a intimidade de diversas formas. Dormir juntos, conferir apelidos carinhosos, falar com voz infantil, partilhar inside jokes, contar e manter segredos, passar por momentos constrangedores juntos, conviver cotidianamente em casa… A convivência é um fator importante, porque intimidade é algo que se constrói ao longo de um espaço de tempo longo.
Não é por acaso que apps de relacionamento são ambientes complicados para se construir relacionamentos duradouros. Um app desconsidera a parte da construção de uma intimidade, porque intimidade não é um produto nem é produtizável. Pelo menos, não até agora. Um relacionamento íntimo demanda investimento emocional, algo que ninguém pode fazer por você. Isso não quer dizer que todo relacionamento que começa a partir de um app está fadado ao fracasso, e sim que o aplicativo é só o início de um processo muito mais complexo de construção de uma relação. O bom é que mesmo um aplicativo não é capaz de exaurir o mistério contido em alguém. As categorias e informações do catálogo de pessoas são superficiais demais para isso. Um potencial problema ocorre se o usuário imaginar que identificar semelhanças nessas categorias seja o bastante (ou um grande passo) para uma conexão definitiva.
Eu conhecia Clarissa há 5 anos antes de darmos nosso primeiro beijo. Só posso considerar isso um golpe de sorte: transformar uma amizade num relacionamento amoroso. Ao longo desses anos, uma série de eventos aleatórios se alinhou para me entregar essa relação íntima tão valiosa. Nem todo mundo tem essa sorte. Eventos em nossas vidas, muitas vezes, atrapalham esse processo, seja pela convivência familiar, pela dificuldade de equilibrar a vida pessoal com a carreira, pela falta de sincronia entre os destinos de cada um. É a parte trágica da história.
Do jeito que entendo intimidade, pode parecer que é impossível ser feliz sozinho. Não acho esse tipo de julgamento necessário, ainda que eu entenda que é mais provável ser feliz mantendo uma relação romântica íntima — além de outros níveis de relações íntimas, como amizade e paternidade. Cada um vive como pode. Uns têm mais dificuldade de seguir o padrão. Alguns padecem por achar que devem seguir, mas seguem mesmo assim; outros tantos não estão nem aí. Eu mesmo quando era mais jovem não entendia ao certo a dinâmica da intimidade e já quis ter o maior número de parcerias possível, como se isso fosse me conferir o maior prazer que eu pudesse acessar. Hoje eu entendo que a intimidade é afrodisíaca, pois permite explorar sensações e dinâmicas que me fariam ser considerado um freak ao tentar experimentá-las com alguém com quem não tenho intimidade. E o retorno que obtenho dessa relação íntima é o maior que já obtive até então.
A partir dessa compreensão, identifico problemas no conceito de poliamor. Há menos mistério acessível quando se busca uma relação romântica íntima com uma quantidade maior de pessoas. Seja lá qual for a ideologia que oriente esse conceito, que não domino, acho improvável se realizar uma conexão íntima substancial dessa forma, pois não só o acesso entre os participantes é limitado pelo tempo, mas também pelo investimento emocional em cada contato individual.
A compreensão do valor da intimidade faz parte de um processo. É um dos muitos conceitos que a gente entende à medida que amadurece. O desenvolvimento da consciência está contido na jornada e o apreço pela intimidade normalmente será exercitado. Com que velocidade e em que momento da vida, depende de cada um. Uma boa educação sentimental no núcleo familiar ajuda bastante, mas não acho que é necessariamente um impeditivo. Há quem consiga superar dificuldades em sua criação para construir relações íntimas positivas. Não é fácil, mas dá pra fazer.
Minha intimidade é fonte de energia e significado. Perdê-la seria bastante arrasador. Mas esse é o preço que se paga por construir algo tão valioso. Se você quer, mas tem dificuldade de construir relações íntimas, pode ser que ainda precise aprender uma ou outra coisa sobre autonomia, amor próprio, desapego de seu ego, compartilhamento e leveza. Se você ainda for muito jovem, não acho que seja uma questão preocupante. Você ainda tem muito a conhecer sobre o mundo para se desenvolver. Se você já estiver mais velhinho, o negócio pode ser mais complicado, mas autoconhecimento sempre será um caminho legal a trilhar em meio a essa busca. Essa é uma das chaves para uma vida mais plena.
Independentemente de quem você seja, eu desejo a você uma vida rica em intimidades, cheia de mistério, manhãs de caras amassadas e cabelos desgrenhados.
Texto publicado originalmente no Medium, em 06/05/2018.