Por que eu acredito em Deus
Eu faço esse registro por sugestão de amigos, para raciocinar e, quem sabe, para reunir argumentos que façam alguém mudar de ideia.
Eu não sou uma pessoa religiosa, no sentido prático. Ou seja, apesar de ter sido educado por uma família originalmente católica e com valores católicos, não vou à igreja, não rezo há muitos anos, não sou leitor da Bíblia, não sigo dogmas (conscientemente).
Meu avô era comunista, meu pai gosta de lembrar. E meu pai carregou essa educação materialista consigo, algo bastante explícito nas histórias que ele conta sobre questionamento em relação à Igreja, nos tempos de frequentador, quando jovem. Como bom pernambucano, ele se revoltou. E a Igreja tornou-se um alvo fácil depois que o materialismo deu as caras. Como consequência, a religião entrou na conta, junto com o conceito de Deus.
Não pretendo escrever sobre Igreja ou religião aqui. Inclusive, por ter pouca propriedade e entender que é nesses assuntos que as coisas costumam complicar, gerando a discordância. O foco é Deus mesmo.
Por essas bandas ocidentais, o Deus católico é quem mais sofre. Também faz sentido, porque é o mais representativo. É ele que devo usar como referência principal da análise, ainda que não seja necessariamente sobre ele que estou escrevendo.
Há alguns anos, eu posso dizer que me reconciliei com o mistério. Reconheço o nível de abstração dessa afirmação. Então, tento explicar. Eu fui educado a ser racional. Tenho consciência disso. Meu ensino religioso durou até a quarta série. Depois disso, foi muito materialismo na cabeça. Como consequência, eu desenvolvi uma visão cínica da religião. Lembro que só passei a questionar essa visão quando, em conversas com meu amigo Bruno, uma das pessoas mais inteligentes que conheço e também dos meus poucos amigos praticantes de religião, pude perceber que crença não é sinônimo de ignorância. A forma como ele respondia os meus questionamentos (e do meu irmão Rodolfo, sempre mais afiados), com paciência, clareza e tranquilidade fez muita diferença para mudar minha visão. Ele também nunca tentou nos converter ou algo do tipo. Esse contato foi um grande passo para minha mudança de visão.
Foi Bruno que me disse que a fé não é uma questão de razão. Não são a mesma coisa e analisar a fé pela razão não faz sentido (e vice-versa). Esse é um dos maiores problemas que um materialista parece ter quando trata do tema “Deus”. Ele se foca na realidade das histórias e imagens. Então, questiona a forma humana de Deus, sua barba, o tom da sua pele, o fato de que ele mora no céu sentado em seu trono rodeado por anjos e tendo tudo sob controle, foca-se literalmente nas passagens da Bíblia. E até sobre este último caso é interessante de se refletir, porque a literalidade do religioso diverge na essência da literalidade do materialista, afinal, o elemento da fé estará sempre presente no primeiro. Em meio a conceitos pouco claros ou mesmo relativos a depender da posição, será sempre difícil dialogar. Por isso, vou buscar deixar meus conceitos claros por aqui.
Voltamos ao mistério. Anos depois dos debates com Bruno e várias leituras, eu mantinha um desconforto constante em relação às perguntas que a razão não consegue responder. Dentre elas, as mais profundas e inacessíveis, como “por que estamos aqui?”, “qual a missão?”, “pra onde vamos?”, “qual o sentido disso tudo?”. Meu ensino materialista não facilitou as coisas, ainda que eu seja muito grato a ele.
Entretanto, toda essa informação acumulada ao longo do tempo uma hora bateu aqui na cabeça de um jeito diferente. É difícil explicar, mas minhas experiências de vida, meus contatos pessoais, minhas leituras, enfim, o ser que eu me tornei passou a perceber o mistério como uma qualidade ao invés de uma limitação. E Marina Lima e Antônio Cícero não me deixam mentir. Olha a letra de Charme do Mundo:
Eu tenho febre, eu sei
É um fogo leve que eu peguei
Do mar, ou de amar, não sei
Mas deve ser da idade
Acho que o mundo faz charme
E que ele sabe como encantar
Por isso sou levada, e vou
Nessa magia de verdade
O fato é que sou sua amiga,
Ele me intriga demais
É um mundo tão novo
Que mundo mais louco,
Até mais que eu
É febre, amor,
E eu quero mais,
Tudo o que quero,
Sério,
É todo esse mistério
O charme do mundo é todo esse mistério. E mistério é aquilo que nos move. Algo cuja explicação integral simplesmente não se aplica. Uma origem sem limites, cujas respostas não são apenas difíceis de encontrar, mas diversas. Não à toa, são respostas que, para a mesma pergunta, mudam a depender do lugar e do tempo em que estamos.
E como tratar questões cujas respostas são relativas? Ainda mais quando essas questões são basilares para você. Por que não desistir, já que a resposta depende. Já que a resposta pode ser outra amanhã? Por outro lado, por que não seguir em frente, já que a resposta vai ser outra amanhã?
É tragicômico perceber agora que eu tinha problemas com aquilo que me mantém em movimento. Com a minha energia, meu poder, minha potência. E potência tem muito a ver com a minha visão de Deus.
Tempos depois de algumas dessas reflexões, eu comecei a ler livros do Dostoiévski em sequência. Primeiro, Irmãos Karamazov, depois Crime e Castigo e Memórias do Subsolo. E foi neste último que realmente o conceito de Deus bateu forte em mim. Em uma passagem do livro (abaixo), o personagem e narrador debate a oposição entre ciência e religião, indicando que, fosse possível explicar tudo pela ciência, a vida perderia imediatamente a graça. Seríamos capazes de calcular uma vida do início ao fim e não passaríamos de pedais de órgão, com funções predeterminadas e sem nuances ou personalidade. Mas há em nós algo imprevisível, que é nossa virtude e nossa maldição. Algo que ele identifica como desejo, vontade e liberdade. Os três são as fontes do mistério.
Agora há pouco eu queria gritar que só Deus sabe do que a vontade depende e que talvez isso seja mesmo o melhor; mas aí me lembrei da ciência e… me contive. Mas vocês começaram a falar. E na verdade, se de fato um dia for encontrada a fórmula de todas as nossas vontades e caprichos, ou seja, do que dependem, de que leis exatamente se originam, como exatamente se difundem, aonde aspiram em tal e tal caso etc. etc., ou seja, a verdadeira fórmula matemática; nesse caso, talvez, o homem imediatamente pararia de querer; talvez até certamente parasse. Qual é a graça de querer de acordo com uma tabela? Além disso: imediatamente o homem se transformaria num pedal de órgão ou em algo do gênero; porque o que é um homem sem desejos, sem liberdade e sem vontades senão um pedal em um órgão? [Memórias do Subsolo, Fiódor Dostoiévski]
Essa passagem me chama muita atenção por outro motivo também. Nós somos seres desconfortáveis. Mesmo quando está tudo bem, permanece uma sensação de que falta algo. Quem tem uma personalidade mais liberal costuma ter essa característica de insatisfação mais aflorada. É o comunista que vive no capitalismo. O capitalista que vive no comunismo. O homem casado que se ressente da falta de liberdade, o trabalhador que deseja ser promovido, o aventureiro em busca de um desafio maior. Quando não temos problemas, buscamos novos. Por quê? O personagem de Dostoiévski escreve de uma forma cínica, mas que acredito conter uma verdade essencial.
… mesmo que ele realmente acabe sendo uma tecla de piano, mesmo que isso lhe seja demonstrado pelas leis naturais e pela matemática, nem com isso ele haverá de tomar juízo, mas fará alguma coisa para contrariar, unicamente por ingratidão, apenas para manter sua posição. Nesse caso, se ele não tiver os meios para isso, inventará a destruição e o caos, inventará sofrimentos diversos e manterá contudo a sua posição! Lançará uma maldição contra o mundo, e, já que apenas o homem pode amaldiçoar (isso é um privilégio seu, que é o principal fator de distinção entre ele e os outros animais), talvez apenas a maldição fará com que atinja seu objetivo, ou seja, realmente convencer-se de que ele é um homem, e não uma tecla de piano! [Memórias do Subsolo, Fiódor Dostoiévski]
Nós somos desconfortáveis e temos fé porque somos humanos. E, em nossa humanidade, está contida a nossa potência. Se não conseguirmos reconhecer que podemos ser melhores, ou seja, exercer a nossa potência, a vida parece perder a graça. Mais Dostoiévski:
Vejam: a razão, senhores, é uma coisa boa, isso é indiscutível, mas a razão é apenas a razão e satisfaz apenas as capacidades racionais do homem, enquanto a vontade é a manifestação de toda a vida, ou seja, de toda a vida humana, incluindo-se a razão e todos os seus pruridos. [Memórias do Subsolo, Fiódor Dostoiévski]
Para mim, crer em Deus é crer em si mesmo e nos outros. E consequentemente reconhecer o potencial de cada um. É perceber a vontade, o desejo e a liberdade em cada um de nós. Acredito que seja uma ação individual acima de tudo. Gosto, inclusive, de pensar em Deus como um "eu" superior, uma referência individual melhor do que nós, que podemos almejar alcançar. E, com esforço e sorte, podemos evoluir na direção dessa referência.
Ao contrário do que um materialista possa pensar, Deus não foi criado para explicar o mistério. Ele é o mistério em si mesmo. É o mistério que carregamos dentro de nós, que nos torna interessantes uns aos outros, mas que também permite que tenhamos um norte a seguir.
O que é Deus? Ou, em outros termos, como Deus se materializa? Como vira palavra, como se torna acessível? Certamente, uma pessoa religiosa e/ou mais versada em teologia terá boas respostas. Por hora, fico com as minhas. Mas uma pergunta importante a se fazer é se as conexões que fiz entre mistério, potência e Deus são mais arbitrárias do que uma boa análise recomendaria. Afinal, há quem entenda que possa existir potência sem Deus. Ou mesmo que o mistério de que falei nada tem a ver com Deus.
Eu acho difícil, apenas por meios materiais, acessarmos uns aos outros — ou mesmo nos acessarmos individualmente. Caminhos materialistas como esses, curiosamente, tendem ao preconceito, à discriminação e à intolerância. Não à toa, mesmo os movimentos de ditas minorias — materialistas em sua essência — acabam replicando atitudes discriminatórias que eles mesmos repudiam se forem executadas por seus adversários. É como se perdêssemos a referência e, em meio ao processo de criação de novas referências, estivéssemos perdidos e fadados a incorrer nos mesmos erros.
Certamente, não sou o único com essas suspeitas. E, mesmo convencido da existência de Deus, eu sigo atrás de informações que possam enriquecer meu raciocínio. Ano passado, li uma série de livros baseados em pensamentos materialistas: Produção de presença (Hans Ulrich Gumbrecht), Futures Past: On the Semantics of Historical Time (Reinhart Koselleck), Comunicação e Diferença — uma filosofia de guerra para uso dos homens comuns (Marcio Tavares d'Ámaral), After 1945: Latency as Origin of the Present (Hans Ulrich Gumbrecht) e História e Narração em Walter Benjamin (Jeanne Marie Gagnebin). Muitos versam sobre o desconforto de se viver num mundo cuja compreensão é baseada no que é material. E, principalmente, na busca por respostas (e sentidos): na experiência, nos fenômenos, na releitura da história, na arte. Mas todos falham, talvez, por tentarem construir pedais de órgãos.
Muitas vezes, eu penso no mundo em que vivemos e nas mudanças pelas quais estamos passando. Penso se poderia ser diferente, se estamos fazendo o que é certo e se podemos mudar conscientemente como grupo. Acho improvável, mas acredito que eu posso mudar. Inclusive, porque percebo que mudei. E mudo de uma forma que acho cada vez mais positiva. Penso que é porque aceitei o mistério como parte de mim. E com o mistério veio o potencial. E com o potencial veio o futuro eu, cheio de interrogações, cheio de possibilidades, cheio de milagres que eu prefiro viver do que explicar. Essa é para mim uma vida cheia de Deus.
O mais provável é que você não esteja convencido de nada diferente do que pensava após ter lido esse texto. Ou mesmo que pense que esse Deus que eu descrevo é muito específico e está mais na minha cabeça do que na cabeça de qualquer extremista religioso. Primeiramente, se é o extremista religioso em quem você baseia a sua análise, acho que ela começou errada. O extremo pode ser sempre uma boa referência para um argumento de autoridade, cujo valor retórico é alto. Mas não é necessariamente porque você está convencendo alguém que você está certo. A melhor forma de se entender um problema é evitar se ater à análises superficiais e buscar o máximo de informações e visões possíveis. Nem todo mundo tem a sorte de ter um amigo ponderado disposto a dialogar sobre sua crença. Nesse sentido, será sempre importante ponderar. Deus é mais do que o homem-bomba, é mais do que o pastor aproveitador, mais do que o Papa ou qualquer materialização. Talvez, se você seguir buscando o seu significado, conseguirá superar essas barreiras materiais e perceber que Deus é um nome que demos a nós mesmos no futuro. E acreditar nele é acreditar nesse futuro para nós.
Eu escrevi esse texto em 2019 e ia publicá-lo no Medium, onde concentrei meus textos até então. Mas, por algum motivo, ele estava nos rascunhos até hoje. Até construí um episódio sobre fé do podcast Algum que sirva baseado nele, mas não o havia publicado. Achei por bem fazê-lo como o post de abertura deste blog.