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Welcome, take a seat.

Sentido a dois

É verdade esse bilhete.

É verdade esse bilhete.

A última semana foi difícil. Uma infecção intestinal no auge da correria desacelera o mais ávido dos corredores. Eu, que sempre estou fazendo algo, não fiz nada por três dias, senão ver TV, tentar comer e atender à óbvia necessidade fisiológica.

Mas, ainda que se perca parte da identidade, a essência permanece lá. Não houve sequer desejo de fazer, pois não havia forças. Porém, a esperança de que tudo passaria em algum momento foi o bastante para manter a sanidade. A gente fica sentimental nesses momentos delicados.

Do sentimentalismo às constatações. É possível não ser como eu sou. E não estou falando de mim, mas sim de tantas outras pessoas, de quem sou diferente. Ao perder a vontade de fazer, coloquei-me no lugar dos que já me disseram estar impressionados pelo fato de que faço coisas demais.

Responder ao “Como você faz?” ficou mais difícil e tornou inevitável a consequente humildade de perceber que não há muito controle sobre a coisa . "Porque sim" é uma resposta tão horrível quanto "porque não ". Eu não sei dizer com precisão porque sou como sou.

"Fazer" é algo que faz parte da minha personalidade. Nem sempre fui assim, e não consigo mais me imaginar de outra forma (a não ser em casos de infecção intestinal, exceções que não contam para a análise). Entretanto, a identificação da minha identidade entra em contraste com a impressão de que não sou eu quem a escolhe.

No fim das contas, falo de sentido. Identidade e sentido são a mesma coisa. É como estar sentado no alto de uma torre e, por isso, conseguir enxergar longe. Amor, raiva, tristeza, alegria, etc. são todos visões de nossas identidades. Mas e se eu não controlo a intensidade do meu amor? E se ela não controla a intensidade de sua raiva? Somos todos descontrolados em busca da sorte de aparecer na torre certa na hora certa para enxergar algo que evite o sofrimento bastante provável?

Eu presto atenção. Essa é minha reação à ausência de controle, à origem misteriosa da identidade, aos sentidos da vida que busco.

E o que eu vejo é ela, a meia-resposta. É meia, porque é incerta, inconclusiva. A metade é insatisfatória a quem tem acesso ao todo, mas a quem tem acesso a nada é o bastante. A cada meia-resposta que obtenho, ganho fôlego para buscar a próxima.

Com quase 40˚C, eu prestei atenção. Foi fácil, apesar da situação. E eu enxerguei a Clarissa com mais clareza. Ela estava próxima, em meio ao seu zelo, que se transformava em preocupação à medida que a temperatura aumentava. Com olhos entreabertos, percebia que ela anotava informações em um papel enquanto me medicava, incentivava-me a beber água e tentava baixar a minha febre. Ela estava lá, como parece que sempre esteve.

Dias depois, encontrei o papel dentro de um dos livros que estou lendo. Na folha de caderno, constam informações sobre a evolução do meu estado físico na pior fase da doença. E de novo presto atenção.

A conexão — não pela palavra, ou ideologia, ou movimento político, ou indignação, ou egocentrismo ou medo — mas a conexão.

Eu e Clarissa estamos conectados de uma forma inexplicável, que o amor romântico tenta catalogar, mas cuja explicação reducionista eu não aceito. Provavelmente, a ciência também tem suas hipóteses. Porém, duvido que cheguem a algum lugar significativo. Nossa conexão é misteriosa como o tamanho do universo. E eu me satisfaço com mais esse mistério.

Para reagir aos mistérios da vida, sugiro criar outros. A conexão é a possibilidade de construir mais mistérios. Mas não como desabafo, não como vingança a um mundo injusto ou por desleixo. E sim como uma forma de viver. Na incapacidade de responder àquilo que não criei e sobre o que não tenho controle, crio novas perguntas sobre algo que também não tenho controle, mas criei.

É a conexão que me permite ser deliberadamente refém dos hormônios, dos humores, das chantagens, dos limites e da ausência deles. Escolhas irracionais com que firmo compromissos e que me ajudam a viver. É a conexão que dá sentido a minha identidade. É ela que expande a visão do meu posto na torre alta.

Formar um conjunto é complicado. Ainda mais tendo como base a nossa fragilidade, relevada pelo egocentrismo que cada um carrega . Não se deve unir pelo medo de ficar sozinho ou pela necessidade de atenção. O mistério é maior que isso. A conexão significativa acontece quando você oferece o que só você tem.

Uma pessoa, um ofício, um desafio, um hobby, uma música, um animal de estimação, um jardim — todos potenciais conexões. Todos fontes de mistérios maravilhosos nos quais você vai passar a vida adorando se enrolar e os quais, quando questionado sobre a razão que o fez se conectar, lançarão uma dúvida inevitável que resultará na mais horrível das respostas: "Porque sim".


Publiquei esse texto no Medium em 08/03/2016. Não lembro de ter ficado doente desta forma desde então.