Crônica da Casa Ressuscitada - II
A gentileza é um sentimento discreto. Já foi celebrada ao ponto de se tornar uma expressão cujo sentido se perde na repetição. Virou adesivo de carro inspirado por um morador de rua filósofo que tinha o costume de pintar paredes com mensagens inspiradoras. Transformada em paródia, segue por aí buscando repouso entre provocações online e desentendimentos no trânsito. Foram gentis comigo quando eu fui atropelado ao atravessar uma faixa de pedestres sem descer da bicicleta pelos idos de 1998. Eu estava errado, apesar de tentar aproveitar o fato de que todos os carros estava parados enquanto aguardavam o último pedestre atravessar. Ele não era o último, mas um carro não me viu sobre a bicicleta e arrancou pra cima de mim. Eu rolei pela calçada enquanto o carro tentava seguir em frente. A bicicleta o segurou e ele acabou parando um pouco mais à frente. Logo, uma série de pessoas se amontoou ao meu redor, entre as quais se destacou uma moça ávida em me aconselhar que era preciso pegar os dados do motorista para evitar que ele saísse impune. Perguntavam-me se estava tudo bem e eu tentava acalmar a todos dizendo que sim. Eu só percebi que não estava tudo tão bem assim ao ver minha camisa do São Paulo rasgada e vermelha de sangue. Queria ligar para meu pai e pedir ajuda. E, gentilmente, passaram-me meu telefone. A ambulância chegou rápido e meu pai também. Não fui ao hospital de ambulância, mas com ele. Apenas meu queixo estava sangrando. Eu passei um tempo meio anestesiado depois disso tudo. Só fui andar de bicicleta anos depois. Pensava nas pessoas querendo me ajudar, no motorista tentando escapar, na confiança que tinha em meu pai e na pequena marca dos três pontos que ficaria no meu queixo. Ao mesmo tempo, estava em paz. Mesmo um acidente pouco grave é capaz de acender um alerta sobre o valor da vida. Ainda hoje, vez ou outra, eu imagino cenas como minha cabeça sendo esmagada pelo pneu daquele carro. Acho que foi muito Robocop quando pequeno. Mas a gentileza de tanta gente logo após o acidente também me marcou bastante.
Ser gentil é agir de maneira delicada, atenciosa, amável, cordial. A delicadeza não grita, mas sussurra. Daí a sua discrição. É um gesto que se perde em meio aos ruídos. Muitas vezes, ganha destaque em momentos como o do meu atropelamento. Mas ela mora em locais mais comuns e inacessíveis ao noticiário. Ela acorda cedo, toma café ouvindo música, faz exercícios recorrentemente, trabalha 8h por dia e busca almoçar algo gostoso. Toma chá com biscoitos e acha que lhe faria bem emagrecer mais um pouco, mas não abre mão dos biscoitos. Escreve para amigos em mensagens diretas e evita emitir opiniões sobre assuntos que não domina. Sorri sempre que pode. Ela viaja de férias quando dá e guarda suas lembranças numa pasta na nuvem. Ela gostaria de se casar e ter filhos, mas nunca se sabe se isso é mesmo pra todo mundo. Os sussurros da gentileza são ouvidos por seus vizinhos mais atentos, que desejam bom dia quando a encontram.
Ser delicado não é sexy. E só deve render uma capa de revista a cada trinta publicadas. Mas talvez seja a maneira mais sustentável de seguir com a vida. Não é algo másculo e quase deixou de pertencer ao território feminino, povoado por sonhos de Chief Executive Officer. Ser gentil está além da palavra e deve ser algum tipo de músculo que se reforça com o tempo à medida que é usado. Gentileza não faz filhos, mas cuida deles. E cuidar dos filhos parece ser a grande missão da gentileza. Talvez seja o seu ato mais simbólico, porque demanda desapego do próprio ego, controle sobre os próprios desejos, leveza apesar da loucura que é lidar com algo que é parte de você, mas está literalmente fora de si. Nós temos muitos filhos, para além dos óbvios. Temos amigos, vizinhos, companheiros de viagem, animais de estimação, colegas de trabalho, uma infinidade de gente que não fizemos, mas de quem podemos cuidar. Eles são todos partes de nós do lado de fora, semelhantes biológica e espiritualmente. E gosto de encará-los como, no mínimo, treinamentos para o caso de sermos contemplados com um filho real.
Eu lembro bastante de um dia em que não fui gentil. Era aniversário de uma amiga no bairro do Sudoeste, em Brasília, e fomos comemorar, diversos grupos distintos. Um dos integrantes da festa me dava certa preguiça, mas eu sempre fui de ficar no meu canto, ainda mais em situações como essa. Nesse dia, ele contou histórias do relacionamento difícil com sua filha, que já tinha seus 13 anos, vivia com a mãe e queria ser atriz. Ele pressionava a filha para que ela estudasse, já que ela desejava ter uma carreira nas artes. Eram distantes e ele buscava se aproximar. Eu achei muito curioso ele não perceber a própria dificuldade de se aproximar da filha. Como ele era um pai caricato, sem traquejo e perdido. Também fiquei surpreso dele revelar tantas histórias de dificuldade, pois havia pessoas ali não tão íntimas, como eu. A festa continuou e, já para o fim, ele me pediu para colocar sua taça de ponche sobre a mesa. Eu tentei ser gentil e servir mais, mas percebi que havia acabado o ponche. Quando o informei disso, ele replicou dizendo que não havia mandado colocar mais, e sim colocar a taça sobre a mesa. Essa provocação, que provavelmente foi uma brincadeira boba, não bateu bem em mim. Eu, que já não era seu fã, fui agressivo como nunca e trepliquei dando a entender que a atitude que ele acabara de ter comigo era o tipo de atitude que ele tinha com a própria filha: “como você faz com a sua filha”. Foi isso que eu disse. O cara quebrou. Tentou responder, mas já era tarde demais. Essa cena ficou na minha cabeça por meses. Pode parecer algo bobo (e provavelmente é), mas eu nunca havia feito algo assim tão deliberadamente. Nunca havia agredido alguém usando como arma a sua própria fraqueza com tanta intensidade. Fiquei chateado principalmente por deixar alguém mexer comigo de tal forma a ponto de fazer isso. Afinal, quem era ele pra conseguir retirar o pior de mim? Ao mesmo tempo, talvez tenha sido a primeira vez que percebi como eu poderia realmente fazer mal a alguém intencionalmente. Passei a me enxergar de outra forma, até com algum medo de que não haveria um caminho de volta depois de exercer esse poder. Mas o tempo foi passando e eu aprendi a ser gentil comigo mesmo, apesar de mim mesmo.
E, quando a gente pensa que está sob controle, vem algo mais e nos desestabiliza. Esses abalos são lembretes — pelo menos, gosto de enxergá-los assim — que nos recolocam no melhor caminho. Após o nascimento do meu filho, todo dia uma novidade se anuncia. Semanas atrás, uma enfermeira que ajudava Clarissa no início da amamentação me viu ninando Matias com balancinhos no braço. Alertou para eu tomar cuidado e evitar a síndrome do bebê sacudido, algo bastante horrível que pode acontecer com pais impacientes que acabam por agredir seus bebês. Apesar do exagero da comparação, que vim a perceber depois com ajuda da Clarissa, rapaz, eu fiquei mal. A noção de que posso fazer mal a meu filho bateu pesado. E é algo tão óbvio. Mais uma vez, o inverso da gentileza se mostrou possível para mim, dentro de mim. E é verdade. Nós carregamos de tudo, inclusive o que não queremos ter e ser. E, mais uma vez, é preciso se reinventar, ressuscitando a gentileza na casa que há em nós e naqueles quem amamos. Nós temos muito a controlar para nos mantermos como gostaríamos: alimentação, exercícios, autoestima, relacionamentos familiares, íntimos, profissionais, criatividade, etc. É impossível prestar atenção em todos ao mesmo tempo indefinidamente.
A convivência social, a insegurança, o cotidiano, a política, a mídia, a internet, o desentendimento, o entretenimento, a missão da empresa, a moda, o cara estranho, o acidente, a pandemia, você mesmo, tudo é motivo para suprimir a gentileza.
Eu penso no que posso fazer para seguir sendo tão gentil quanto possível. Eu tenho buscado ajudar a Clarissa, tirar o peso de seus ombros com o parto recente. Tenho beijado meu filho muito, como uma forma de recarregar a bateria e mostrar que o amo. Manter a casa em ordem me acalma e me satisfaz. Sorrir de volta aos passantes distantes quando caminho com Matias por 10 minutos para pegar sol, agradecer o entregador e desejar um bom trabalho; desejar bons negócios ao contato comercial. A cada gesto de gentileza é como se eu resgatasse o homem que há em mim. Não o sexy ou poderoso, mas o forte de espírito. Aquele que não precisa demonstrar que é melhor do que ninguém, mas que deseja poder contribuir para o melhor de cada um. Ser gentil é servir discretamente. De uma forma tão sutil que talvez nem mereça qualquer atenção. Mereça apenas ser comum, como tudo que é normal. Ressuscitar a casa é o ato de gentileza original que possibilita todos os outros.